Ampla defesa e contraditório na produção antecipada de prova

Entre as inovações do CPC de 2015, merece destaque a disciplina da produção antecipada de prova sem depender de perigo

Além da antecipação de prova ser autorizada na hipótese de fundado receio de que se torne impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos no decorrer do processo (artigo 381, inciso I, do CPC), a lei passou a admiti-la expressamente quando for suscetível de viabilizar a autocomposição (ou outro meio adequado de resolver o conflito), bem como quando puder evitar ou justificar o ajuizamento de demanda, nos termos do artigo 381, incisos II e III, do CPC. Dessa forma, consagrou o direito autônomo à prova [1].

Apesar desse acerto do legislador, o texto do artigo 382, §4º, do CPC de 2015 sempre recebeu críticas no país [2]. É que, de acordo com tal dispositivo, seria inadmissível defesa ou recurso na ação de produção antecipada de provas, salvo contra decisão que indefira totalmente o pedido do autor. Entretanto, segundo a doutrina, isso não se harmoniza com as garantias constitucionais do contraditório, da ampla defesa e, enfim, do devido processo legal (artigo 5º, incisos LIV e LV, da CF) [3].

Em julgado de 07/03/2023, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça enfrentou a controvérsia supracitada no REsp nº 2.037.088-SP. Na origem do caso, houve propositura de ação de produção antecipada de provas com base no artigo 381, incisos II e III, do CPC, na qual se pleiteou a exibição de múltiplos documentos e a prestação de várias informações relacionadas à atuação da ré enquanto auditora de sociedade sediada na Alemanha. Após o deferimento liminar do pedido, o Juízo de 1ª instância determinou a citação da ré e advertiu que não admitiria defesa ou recurso no processo, conforme o texto do artigo 382, §4º, do CPC [4].

Interposto agravo de instrumento pela ré, nem sequer foi conhecido pelo TJ-SP, pois inexistiria interesse recursal devido à expressa disposição do artigo 382, §4º, do CPC [5], o que ensejou o REsp nº 2.037.088-SP [6].

Ao apreciá-lo, o relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, acompanhado pelos demais integrantes da 3ª Turma, afirmou, em suma, que: a) o proceder das instâncias ordinárias apartou-se do modelo de processo civil constitucional vigente no Brasil (artigo 1º do CPC); b) eventual restrição do exercício do direito de defesa pela lei não pode eliminá-lo por completo; e c) o artigo 382, §4º, do CPC proíbe apenas a veiculação de matérias impertinentes à produção antecipada de prova, motivo pelo qual questões inerentes ao objeto da ação e ao procedimento podem ser aventadas antes do proferimento de decisão, a fim de assegurar o contraditório [7].

Nesse contexto, o incensurável acórdão da 3ª Turma está em plena sintonia com as lições da doutrina brasileira e interpreta o artigo 382, §4º, do CPC à luz das garantias processuais constitucionais, como deve ser. Aliás, a possibilidade de apresentação de defesa no processo de antecipação de prova é relevante para impedir o uso abusivo do instituto. Por isso, espera-se que a jurisprudência de todos os tribunais do país observe essa ratio e se mantenha estável, íntegra e coerente (artigo 926, caput, do CPC).

[1] Cf. YARSHELL, Flávio Luiz. Da produção antecipada da prova: art. 381 ao art. 383. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Coords. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1027.

[2] Cf. ibid., p. 1041-1042; BATISTA CINTRA, Lia Carolina. Litisconsórcio e intervenção de terceiros no processo autônomo de produção antecipada da prova. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos et al. Coords. Processo em jornadas: XI Jornadas Brasileiras de Direito Processual. XXV Jornadas Ibero-Americanas de Direito Processual. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 590-591; TALAMINI, Eduardo. Produção antecipada de prova no Código de Processo Civil de 2015. Revista de Processo, São Paulo, v. 260, out. 2016, p. 12. Versão eletrônica; DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. v. III. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 118-119; AMARAL, Guilherme Rizzo. Alterações do novo CPC: o que mudou? 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 699-700.

[3] Cf. ibid., 2015, p. 1041-1042; ibid., 2016, p. 12; ibid., 2017, p. 118-119; ibid., 2018, p. 699-700.

[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3ª Turma). Recurso Especial nº 2.037.088-SP. Relator: ministro Marco Aurélio Bellizze, de 07/03/2023. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202202788280&dt_publicacao=13/03/2023. Acesso em: 11 ago. 2023.

[5] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (34ª Câmara de Direito Privado). Agravo de Instrumento nº 2111871-69.2021.8.26.0000. Relator: Des. Gomes Varjão, de 13/12/2021. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=15310450&cdForo=0. Acesso em: 11 ago. 2023.

[6] BRASIL, op. cit.

[7] BRASIL, op. cit.

Confira artigo de Igor Campos Oliveira, advogado da APN Advocacia e mestrando em Processo Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), publicado na ConJur: https://www.conjur.com.br/2023-ago-21/igor-campos-ampla-defesa-producao-antecipada-prova

 

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